Monday, May 08, 2006

Um Campo Basta

«Um campo basta.»

Sunday, January 29, 2006

Bate Bate Levemente...

Ah! O mistério da neve enfim a nossos olhos revelado! É o Alentejo coberto, entre as azinheiras, enchendo o campo aberto, com as neves primeiras - o branca tapeçaria de Penélope-Deus: não a desfaças! As cidades cobrem-se de algodão doce sobre a agrura do alcatrão: reganham inocência! E os espíritos humanos espantam-se, porque nas suas gaiolas de ouro, haviam-se esquecido do que reside para além da artificialidade das suas construções. Esqueceram-se da Natureza, como se esqueceram de ser Homens. E Deus lhes relembra o mistério da grandeza das coisas sempre jovens de Gaia cheia de beleza! Vai-se casar, a Grande. Noivo - nós! - podeis beijar a noiva!

Tuesday, January 24, 2006

Poema Dum Funcionário Cansado

Playtime, Jacques Tati

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.

António Ramos Rosa

Monday, January 23, 2006

Liberdade


Declamação de João Villaret


Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

Saturday, January 21, 2006

Reflexão #1

O Cesto de Pão, Dali

Inevitavelmente, ficarei desempregado. Sobre esta proposição se contrói todo o movimento moderno do Beijo de Gaia, do regresso à terra. Queremos ser novos Anteus, e na simplicidade da terra - respondendo ao apelo de Thoreau «Simplify!» - reencontrar o Homem e Deus. Possamos, como hino da nossa revolta, citar o Selvagem de Huxley: «Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado.» E, como nesse Admirável Mundo Novo que é hoje o nosso, retorqurinos-ão «... você reclama o direito de ser infeliz.» Ai! soubessem eles que a verdadeira felicidade e paz - a ataraxia epicurista - está na noz onde nós, Hamlets!, somos reis e não numa pestilenta Dinamarca!
O nosso despojamento é livre, a nossa renúncia voluntária: e ainda assim o mundo, forçosamente, vergar-nos-ia ao igual comportamento. Inserimos no sistema, esponjamo-nos, até nos regurgitarem. Inevitavelmente ficaremos desempregados, pouco importa (tão pouco é o que o é) a média - porque tudo se nos pede medíocre. Somos, reconheçamo-lo, a geração dos náufragos. Nesta Jangada de Pedra, inevitavelmente, derrocaremos para o mar. É vão, como toda a vanidade das complexidades inúteis desta sociedade, o que nos esforçamos. O que aprendemos não nos dará o pão, não nos dará a arte, não nosa dará a esposa: que interessa fora disto? Se o pão é sinédoque da casa, se a arte é perífrase de toda a criação, intelectual e física, poema ou filha, se a esposa é hipérbole de todo o amor, felicidade e paz: que mais, pois, poderemos - deveremos - reclamar? Mas nenhum da trindade nos é garantido pelo sistema educativo, que nos condena, sabêmo-lo e não mentimos a nós mesmos na ânsia sôfrega de verdade, ao desemprego.
Nenhum nos concede também a sociedade capitalista, sem que repugnância nos cause. Acaso podemos apreciar a arte sem que em nós se acalente vivamente na vontade o sonho? Ante a criação, todo é criador! O que não cria, é mascarado no baile do divino. Pois a mesma veemência com que censuramos a passividade a-estética, com a mesma incredulidade com que a fitamos, não deveríamos olhar assim também para o pão, para a casa? Não deveria ser motivo de desonra que o pão que comemos não o tenham sido as nossas mãos a amassar? Não será justa causa de vergonha a casa que habitamos não a termos edificado?
Estas são as coisas que não teremos, apesar de construírmos olheiras sobre livros bibliotecários. O Jesus Cristo de Pessoa ajuizadamente não tinha biblioteca nem percebia nada de finanças - sábio homem! Em boa conta o tenho, e em igual estima tratarei os seus iguais! Não é um apelo contra o saber - mas pela sabedoria. Não é negar a leitura de um poema como quem admira uma mulher nua, mas rejeitar frontalmente a dissecação livresca de quem faz a autópsia a um cadáver feminino. É questionar toda a inutilidade que acumulamos, porca como a cera de um ouvido. A isso, um só fim se queremos luz: queimar! E deixar a chama liquidar a sólida cera...

Monday, January 16, 2006

Primeira Introdução ao Livro do Rei de Ítaca



O Livro do Rei de Ítaca pretende ser um compêndio introdutório ao nosso movimento do Beijo de Gaia - essa deusa da terra na antiga mitologia grega; esse retorno à terra, à simplicidade, à comunidade. As linhas de força serão definidas por meio de uma série de textos de alguns dos seus mais brilhantes teorizadores e, claro, praticantes - pois ninguém com ideias tão fortes se pode cingir à palavra: inevitavelmente transborda o vebro para a carne.
O livro encontrar-se-á dividido em três secções, aqui indistintamente apresentadas ao ritmo a que serão trabalhadas. Uma primeira, intitulada Ceres ou O Campo, que reflectirá sobre o isolamento da sociedade e a experiência de regresso à terra e implicada auto-suficiência. Ponto forte desta será a tradução de Walden, de Thoreau. A segunda secção, apelidade de Témis ou A Lei, dedicar-se-á ao anarco-pacifismo, destacando-se as traduções de O Reino de Deus Está Dentro de Ti, de Tolstoi, e escritos de Gandhi vários. A terceira parte, chamada de Atena ou A Cidade, consiste numa reflexão sobre os aspectos mais práticos do processo de transição e num conjunto de reflexões dispersas da autoria do Rei de Ítaca sobre a temática e a problemática moderna, acompanhadas de outros escritores soltos de almas eminentes.
Como se escreve na declaração de 1838 da Sociedade para o Estabelecimento da Paz Entre os Homens: "Esperamos vencer pela Insensatez da Pregação. Tentaremos publicitar os nossos pontos de vista entre todas as pessoas, qualquer que seja a sua nação, clã, ou classe social a que pertençam." O primeiro passo para a concretização desta revolução pacífica, porém radical, é a divulgação da nossa ideologia através deste conjunto de textos que pretendemos que sirvam não só como veiculadores da nossa mensagem, mas também como compiladores da nossa sabedoria primeira nestes assuntos. O Livro do Rei de Ítaca deverá circular, de mão em mão, clandestinamente, paulatinamente penetrando nos corações das pessoas. Assim, orgulhar-nos-emos de podermos afirmar, como declarava Thoreau:
"Não me proponho escrever uma ode ao desânimo,
Mas cantar tão fortemente como um galo na manhã,
No seu poleiro, mais não seja para acordar os meus vizinhos."

O Rei de Ítaca


A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desliga da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
O Nome das Coisas